domingo, 29 de março de 2009

** Páginas encontradas em uma escrivaninha da antiga casa que aluguei ano passado. Depois de muitas “manifestações” não tive mais como permanecer lá; o transcrevi porque creio que todos devem ficar cientes do quão difícil é morrer.


06 de outubro de 1999.

Pouca coisa faz algum sentido agora, estou confusa e muito preocupada. Só essa semana já é o terceiro médico que consulto. Todos incapazes de descobrir a minha doença.
Minha cabeça lateja cada dia mais intensamente, meu corpo parece dormente e as dores são intensas. Percebo que meu filho, Carlos, sofre comigo nesse estado. Ele é jovem demais para tantas preocupações. Sinto-me mal por não poder confortá-lo. De qualquer forma, preciso prepará-lo para quando eu não mais estiver aqui.
Há alguns dias atrás, algo muito estranho ocorreu com ele nessa casa, estou sinceramente com medo. Amanhã pela manhã procurarei um psicanalista, isto é, se eu conseguir levantar de minha cama.
Ele é um garoto incrível, para dizer a verdade é o único que conversa comigo há tempos; de quando em quando tem surtos de “loucura”, assim como seu avô, o meu pai. Quando criança Carlos costumava passar horas sozinho em seu quarto conversando em voz alta com amiguinhos imaginários, e, por vezes, gritava descontrolado, dizendo que vozes lhe mandavam fazer “coisas”. Quando questionado a respeito de quem seriam essas “vozes” e que “coisas” seriam estas, respondia com frases sem sentido, tais como: “Eles querem que eu as ajude”, em outras, apenas ria descontroladamente.
Nunca acreditei em espiritismo, e, apesar de ser alertada por minhas amigas sobre o caso, preferi o internar em uma casa de repouso, onde permaneceu por alguns anos.
Somente no seu aniversário de quinze anos é que eu o trouxe de volta, julgando-o curado, como, de fato, os psiquiatras atestaram. Desde então não tivemos mais problemas. Raramente pergunta pelo pai, mas sei que chora desde o acidente que o vitimou há cinco anos.
Eis que alguns dias, o pesadelo retornou ao nosso lar. Era domingo ou sábado, não tenho muita certeza (ultimamente tenho confundido as datas, os dias, não sei por quê). O tempo estava nublado, como costuma ficar durante o outono nessa região do Paraná. Carlos me disse alguma coisa, mas não consegui escutar nada além de palavras vazias. Estava deitada em minha cama, sem forças para levantar nem mesmo o braço. Ele parecia muito apreensivo e, ao mesmo tempo, nervoso.
Fiquei magoada na hora, sentindo-o tão pouco compreensivo com o meu estado de saúde. Perdoei-o em seguida, pois estava muito desesperado. Parecia diferente, mais alto, mais velho, seria uma ilusão de ótica ou minhas vistas também estariam sendo afetadas pela doença?
Dois estranhos adentraram a nossa casa e eu pude enfim levantar para ver quem eram. Não os conhecia como amigos de Carlos e muito menos como vizinhos ou parentes. Todos estavam tão apreensivos quanto o meu filho, eles eram muito mais velhos e um deles tremia intensamente com a sua bíblia na mão.
Eu lembro que um deles ordenou a meu filho que buscasse “algo que ela gostasse muito”. De quem estariam falando? Ele partiu em direção a meu quarto e eles começaram a arrastar os móveis da sala, liberando espaço no centro.
Não entendi o que ocorria e tentei impedi-los sem sucesso. Na hora percebi que meu filho estava em uma crise de loucura daquelas e trouxe assaltantes mal intencionados para dentro de nossa casa. Tentei ligar para a polícia, gritar o máximo que minha garganta cansada pudesse aguentar, atirar pratos e outros objetos sobre eles e, no final, consegui os expulsar. Aquele que segurava a Bíblia parecia estar com muito medo e correu logo depois que lhe atirei o primeiro objeto.
Carlos desceu correndo a escada com o colar que fora de minha bisavó e que eu jamais tirava do pescoço. Aliás, eu tinha certeza que estava com ele naquela hora. Estaria meu filho me roubando? Não, me recuso a acreditar em tamanho absurdo! Até porque ele sabia que havia algum dinheiro e objetos valiosos no cofre e pegar aquele cordão de ouro que tinha muito mais valor sentimental do que qualquer outra coisa, seria bobagem.
Ele gritou o meu nome como se eu não estivesse ao seu lado, era um dos seus surtos, pobre filho! Saiu correndo para fora de casa e partiu de carro juntamente com os criminosos.
Minha cabeça começou a doer intensamente e mal consegui me manter em pé, a tontura fez com que eu caísse no chão de madeira e fosse acudida por um senhor de aparência bondosa que lembrava muito um médico que havia consultado dias atrás. Não entendi o que ele estava fazendo ali, mas não pude recriminá-lo. Ele disse-me uma coisa horrível, que não repetirei jamais e, então, eu o expulsei.
Uma voz me chamava de longe, era a doce voz do meu filho e eu, de alguma forma apareci ao encontro dele no cemitério da entrada da cidade. Não era um lugar que eu visitaria, sempre tive muito medo de permanecer lá dentro, ainda mais de noitezinha. Por que ele me levou até lá durante o tempo em que permaneci desmaiada? Naquela hora percebi que Carlos ainda não estava pronto para ficar fora da clinica, o internaria imediatamente no primeiro momento que tivesse oportunidade, ele tornou-se um perigo para mim e principalmente para si mesmo.
Eu estava dentro de um círculo de sal grosso, eu acho, onde os dois estranhos diziam palavras em línguas estranhas. Meu filho, chorando como uma criança pôs-se a falar:
- Mãe, mãe, por favor, mãe... Você precisa ir embora. Você precisa encontrar a sua paz.
Não entendi o que ele falava e, infelizmente, não conseguia ir até ele para abraçá-lo.
- Mãe, você estava no carro quando o pai se acidentou, e...
O que ele estava tentando dizer meu Deus? Senti uma dó muito grande dele naquela hora.
- Você não ...!!
Foi um choque pra mim, eu admito. Pobre filho meu, estava sendo manipulado por aqueles charlatões que aproveitavam-se de sua cabeça fraca para arrancar-lhe algum dinheiro. Tentei consolá-lo e dizer que eu estava bem, mas ele não acreditou.
A chuva estava com certeza me fazendo mal e lhe pedi que me levasse para casa, mas ele ajoelhou-se e começou a chorar intensamente, assim como estavam os outros dois.
Insistiu então que eu olhasse para baixo de meus pés. Descobri então que havia alguém enterrada ali com o mesmo nome que o meu, mas que diferença isso faria naquele momento?
Voltei para casa, onde permaneci sozinha por muitos anos amargando o abandono de Carlos que jamais retornou a me visitar. Tentei por alguns meses procurar outros médicos, mas jamais soube qual doença tenho na verdade. Se você me perguntar se culpo meu filho, lhe direi que coração de mãe é feito de manteiga e não consegue guardar rancor.


06 de junho de 2006

É incrível perceber o quão à mercê do destino estamos. E se eu não tivesse sugerido aquele passeio, tudo teria um final diferente? Enfim, cansei de lamentar e também compreendi, após tantos anos vagando nesse mar de ilusões, a minha missão, o motivo de ter permanecido presa aqui e, principalmente, a necessidade disso.
Muito mais fácil foi simplesmente negar tudo que aconteceu e continuar fazendo isso mesmo depois de morta. Eu neguei a maldição ou, quem sabe, o dom de Carlos e agora tenho a obrigação de ajudá-lo a cumprir o seu fardo, para que assim ele possa também alcançar seu lugar de direito próximo ao criador.
É estranho pensar na existência de Deus na minha situação, sua imagem benevolente fica tão mascarada por esse turbilhão de espectros que insistem em ocultá-lo. Acreditar ou não, é meramente uma questão de fé.
Meu filho passou a ajudar as tais vozes que lhe perturbavam na adolescência. Acompanhado de outros dois colegas, que vim saber depois tratar-se de um jovem padre e uma cartomante, começou a solucionar seus problemas e desfazer as âncoras que os mantinham- seus espíritos- na terra dos mortais. Eu não sabia o porquê disso, apenas que deveria acompanhá-lo.
Há alguns dias, ele saiu de sua nova casa e rumou ao litoral acompanhado de seus amigos. Pareciam incrivelmente assustados e poucas palavras foram trocadas durante o percurso. Pelo que entendi, a garota psicografou uma mensagem e a codificou usando de seus métodos pouco ortodoxos.
Alguém a chamava, e, nos momentos de transe, dizia algo como: “Socorro! Eles vão matar o meu filho (...)”. Eu percebia uma aura luminescente especial nela. Quando se atravessa para “o outro lado da vida”, nossa percepção muda radicalmente.
O destino, uma cidade não muito distante chamada Guaratuba.
Carlos estava apreensivo e, depois de se hospedar em um hotel da cidade, pôs-se a investigar os fatos que os levaram até lá. O seu amigo padre preferiu rezar, pedindo ajuda a seu Deus. Sua fé era comovente, pena eu não estar segura para afirmar que ela o ajudaria.
De madrugada eles partiram para a praia e então tudo começou a fazer um pouco de sentido, ou melhor, será que alguma coisa faz sentido? Uma mulher vista apenas por Carlos cruzou o calçadão correndo apressada.
Meu filho, correu desesperado atrás dela para tentar conversar. Ele perguntou o que havia ocorrido para que ela estivesse tão aflita, ela respondeu desesperada: “Me ajude, por favor, eles vão matar meu filho...” e a imagem se dissipou como se nunca tivesse estado lá.
Ele retornou e comentou o ocorrido com o grupo. Eu ouvi comentários como: “Então, a lenda é verdadeira!” e o franciscano começou a tremer segurando fortemente sua Bíblia.
No outro dia pela manhã, se separaram: o padre foi procurar jornais de anos atrás, Carlos colheu depoimentos de pessoas que afirmavam ter visto um fantasma na orla, e a garota arriscou-se em um estranho ritual para tentar descobrir algo que pudesse ajudar a tal aparição, porém, por mais nobre que seja o seu objetivo, nada justifica a prática do jogo-do-copo! Pobre garota, tão inexperiente!
O mistério chegara ao fim - ao menos aquele - um dos jornais pesquisados dizia que uma senhora fora encontrada morta em casa, juntamente com seus filhos, tudo indicava que seu marido a matara por ciúmes e, depois, por desespero, fez o mesmo com os filhos e suicidou-se.
O detalhe que revelou a trama, fora uma forte evidência: ela usava um vestido azul idêntico ao da mulher fantasma, anteriormente descrito nos depoimentos daqueles que diziam tê-la visto. O motivo dela correr sempre nas sextas-feiras, o dia da semana em que, segundo o jornal, a tragédia ocorreu, também a ligavam ao estranho caso. O problema é que já fazia quase dez anos e ela continuava sem saber que estava morta... Céus, como isso é triste!
Eles adentraram a antiga casa abandonada e Carlos foi amaldiçoado com a estranha lembrança que os objetos segregavam. O espírito daquele homem continuava lá, remoendo o que fizera anos atrás. A cartomante, também médium, tentou alertar a esposa (chamada pelos habitantes de A Dama de Azul) enfurecendo assim o suicida desgraçado. O padre, devido a algum fenômeno cuja explicação não possuo, ficou extremamente atordoado quando começou a ouvir barulho de madeira podre da casa. O medo tomou conta de seu coração benevolente e meu querido filho tentou acalmá-lo, mas não houve tempo: ele sacou uma pistola que sempre carregava consigo e apesar de Carlos tentar arrancá-la de sua mão, ele a disparou.
O corpo do meu jovem filho caiu naquela terra profana que, infelizmente, fez outra vítima. O espírito suicida havia o perturbado seu companheiro, aproveitando-se de sua maior fraqueza, por essa razão não o culpo. A jovem, não pode fazer mais nada além de tentar conter o outro e socorrer inutilmente seu grande amigo. Poucas vezes eu presenciei tão doloroso pranto.
Meu filho levantou-se e pôde, enfim, dar-me o abraço que tanto desejávamos. Infelizmente não por muito tempo, já que ele não cumpriu seu objetivo e nem eu o meu. Não éramos merecedores de tamanha graça, falhei como espírito protetor e ele como sensitivo. Me pergunto se algum dia poderei vê-lo novamente.

Já não há motivo para permanecer no plano dos “vivos”, nada mais me prende aqui. Ainda sonho em ver o doce sorriso do meu querido Carlos.


RF